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Os livros
famosos-as
"memórias" DE H. DE campos
Por essa época as condições económicas da família pioraram considerà-velmente, obrigando-a a transferir-se para lugar ainda mais modesto e a alugar a pequena casa comprada com a quantia recebida do inventário. Humberto de Campos dá-nos então uma descrição perfeita de um arraial de pescadores, no capítulo "Morros". Ao voltarem novamente para Par-naíba, sua mãe, em consequência da falta de recursos, vê-se obrigada a tirá-lo da escola, empregando-o como aprendiz em uma das duas únicas alfaiatarias com que contava a cidade. Começou então para o futuro membro da Academia Brasileira de Letras um período de humilhação, em que serviu de criado para os empregados mais antigos da casa, tendo algumas vezes feito serviço de entregador de roupas já feitas. Os tios de Humberto de Campos,
estabelecidos em Parnaíba, sentiram--se diminuídos com a humilde
situação do sobrinho e resolveram matriculá-lo em um colégio, o
"Externato São José", cmprcgando-o
depois dasaulas
como auxiliar de balcão na firma de propriedade de Emídio
Veras. São de grande valor documentário os capítulos "Externato São José" e "Zé Miranda", dedicado este à figura bizarra do diretor do Externato, homem impetuoso e de génio contraditório, que conduzia seus alunos para roubar frutas e galinhas nos quintais vizinhos. Para termos uma ideia exa-ta do que era esse "educador", basta ler o trecho seguinte: "José Serra de Miranda utilizava os seus alunos como os príncipes utilizavam os seus exércitos, isto é, pondo-os ao serviço de suas paixões e interesses. Uma tarde, estacou diante da escola um rapaz conhecidíssimo pela sua valentia. João de Barros, era o seu nome. Rival de Serra de Miranda, na conquista de uma das morenas que faziam palpitar o coração do "Mestre", fora postar-se ali para dar-lhe uma surra à vista dos discípulos. Zé Miranda ficou branco de cólera, ou em consequência de qualquer outro sentimento. E chamou às armas a escola. Em um momento, estávamos, todos, armados de trancas, réguas, pedras e cabos de vassouras, em posição de combate. O "Mestre", do interior da casa, gritava, pela rótula fechada: — "Avancem!... Pedra nele!... pedra!... pedra!... "As
pedras choveram. João de Barres
marchou, porém, para a meninada. "Costuma-se dizer que, o que acontece no primeiro dia do ano, acontecerá durante ele todo. Adotado o mesmo critério em relação ao século, ter-se-á explicado, talvez, a minha paixão do trabalho, e a atividade infatigável que me tem caracterizado a vida. É que eu passei a última hora do século XIX e a primeira hora do século XX, trabalhando, como se elas não fossem, na existência de um homem, diferentes das outras. A minha passagem pêlos jornais como tipógrafo, quer em Parnaíba quer no Maranhão, tinha-me dado a noção, já, da majestade da hora que ia soar no surdo bronze do tempo. Eu estava ao corrente da importância excepcional de que se revestia, para o mundo inteiro, aquela transição cronológica, e do interesse, da ansiedade, do nervosismo, com que os homens a aguardavam, como se o novo período da história humana trouxesse, a todos os povos, a felicidade e a redenção. Ao meu espírito infantil, a que o sofrimento e a experiência haviam dado vivacidade precoce, não escapava o relevo daquele acontecimento, que seria único na minha vida. E o que eu lia, e o que me rodeava, contribuía para acentuar aos meus olhos a culminância do fato de que eu ia ser testemunha. O 31 de dezembro, foi, mais ou menos, como a véspera do Natal. Tendo, também, um "bar", em que era servida cerveja do Rio e de São Paulo, a Casa Trasmontana ficava, às vezes, com as portas cerradas a partir das oito horas da noite, mas funcionava interiormente até nove ou dez, à disposição de pequenos grupos de beberrões, que permaneciam discutindo política, ou casos particulares, em torno das mesas redondas. E, naquela noite de fim de século, não foi aberta exceçãp: ficamos a servi-los até às dez horas, quando os mais retardados se retiraram. Através das sólidas portas coloniais inteiriças, e reforçadas de chapas de ferro, como as dos conventos antigos, eu adivinhava o movimento que ia lá fora, nas ruas da cidade. Foguetes estouravam longe. Transeuntes satisfeitos falavam alto, estalando os pés no passeio. De meia em meia hora passava um bonde, com o seu áspero ruído de ferragens ao trote ligeiro dos burros. O chicote estalava no ar, amarrando os gritos do cocheiro. E o barulho do veículo perdia-se à distância, desaguando no largo do Carmo. Às dez e meia, enfim, com as portas rigorosamente fechadas, e com os bicos de gás abrindo em pequenos leques nos diversos compartimentos da velha casa de comércio, o Sr. Dias de Matos torceu os seus fartos bigodes lusitanos e grisalhos, e ordenou: — Vamos dar balanço nas mercadorias... Comecemos pelas bebidas. E tomando um caderno de papel, o lápis atrás da orelha, sentou-se a uma das mesas redondas. Sem um protesto ou um movimento de má vontade, atiramo-nos, os cinco caixeiros, ao trabalho. Deitadas nas prateleiras, o gargalo para fora, como canhões de fortalezas de vidro, as garrafas de cerveja, de vinho, de conhaque, de vermute, eram contadas, c' anunciadas, em voz alta. — Trinta e seis garrafas de cor que Macieira! j — Trinta e seis de Macieira..! confirmava o patrão, escrevendo. — Vinte e duas de Colares n." l — Vinte e duas de Colares n.° ] repetia o Sr. Dias de Matos. — Quatorze meias ditas, idem! — Quatorze meias ditas, idem! De repente, reboa, longe, o apite uma fábrica de tecidos. Um fogii estronda. Outras fábricas acon nham a primeira. Trepado em t escada eu conto, nesse momento, uma prateleira alta, que fica só uma porta, algumas filas de latas azeite de oliveira: ' — Um, dois, três... quatorze, vinte, trinta... trinta e oito... E esta, abandonando armas e munições, desatou a correr para dentro da escola, onde, nessa tarde, a palmatória roncou mais do que nunca, e Serra de Miranda fez uma preleção contra a covardia." As originalidades do professor causaram por fim o descrédito do Externato e muitos alunos passaram-se para um novo colégio, entre eles Humberto de Campos. Nesse novo colégio, denominado Colégio Saraiva, informa o autor de "Memórias" que teve a primeira orientação verdadeira nos estudos. Em consequência da mudança de horário das aulas Humberto de Campos abandonou temporariamente o balcão de Emídio Veras & Cia. Entretanto, a situação de verdadeira penúria, então atravessada por sua família, fez com que retornasse ao emprego pouco depois, com um pequeno ordenado e refeições na casa do tio. No capítulo que tem por
título "Na escola do vício", descreve-nos Humberto de Campos os frequentadores da casa comercial de seu tio,
onde era vendida aguardente aos trabalhadores do cais, que carregavam
e descarregavam as barcaças. Ouvindo os palavrões proferidos por
aqueles homens boçais, Humberto
ia corrompendo seus ouvidos; mas havia outra escola ainda pior.
Aos domingos, na feira, os valentões bebericavam até surgir alguma contenda, em
que se desafiavam para uma luta a pau. O que fraquejava ou era atingido
pelo adversário recorria à faca, e infalivelmente essas brigas
terminavam com a morte de um dos contendores. Eis o ambiente ?>ml:namespace prefix = st1 ns =
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ditas, idem! De repente, reboa, longe, o apite uma fábrica de tecidos. Um fogii estronda. Outras fábricas acon nham a primeira. Trepado em t escada eu
conto, nesse momento, uma prateleira alta, que fica só uma porta, algumas filas de latas azeite
de oliveira:
'
—
Um, dois, três... quatorze, vinte, trinta... trinta e
oito... O buzinar das fábricas, o
estrom dos foguetes, a gritaria que
vem i ruas, o Hino Nacional atacado
piano em uma casa próxima, int rompem
a minha conta, detendo-o dedo sobre a tampa de uma i latas. Aquele momento é excepi nal na História da Humanidade.
civilização vira uma página lida s saber que emoções lhe reserva a tra, que vai ler.. . De
pé na esca tudo isso me passa pelo pensamei Ao fim, porém, de um minuto, c
tinuo a
conta: — Trinta e nove, quarenta, q
renta e um, quarenta e
dois... E é ainda com a buzina de
algui fábricas retalhando o céu com o
tilete sonoro, que anuncio, do i da escada, para o
patrão: — Quarenta e dois litros de
az' português Brandão
Gomes! E ele, com a mesma fleuma, i levantar a cabeça do papel em
escreve: — Quarenta e dois litros de
az português Brandão Gomes... Foi assim, que, humilde caixein século dezonove, penetrei o sei vinte." O homem que mais tarde seria uma das glórias literárias de seu país foi arrastado então pêlos maus exemplos, e cometeu um grave delito de que se confessa no capítulo "Na escada de sete degraus". Abusando da confiança do tio, começou a retirar pequenas quantias da caixa registradora da firma, unicamente para se vangloriar, pois essas importâncias não eram gas-^ tas em coisa alguma, entregando-as a um amigo para que as guardasse Pouco tempo depois Humberto foi surpreendido a abrir a caixa registradora, conquanto não houvesse naquele dia retirado um níquel sequer. Tornava-se impossível a permanência na casa comercial, e o autor desci a seguir um dos episódios mais máticos de todo o livro: a confi à mãe, mais uma decepção para a bre senhora tão atribulada. Depois de algum tempo cornpl mente entregue a si mesmo, pois mãe tinha todo o seu tempo ocup na fabricação de meias para vem Humberto conseguiu ser admi como auxiliar de tipógrafo em jornal recém-fundado em Parnaíbi que teve, entretanto, pequena duraç Continuando o menino sem ocu cão, outro tio, Franklin Veras, p pôs-se empregá-lo na cidade de i Luís, e Humberto de Campos, c apenas treze anos de idade, deixa mãe e segue sozinho para uma te desconhecida. Ao aportar a São Luís, depois uma viagem incómoda, na terei classe de um navio costeiro, Hi berto de Campos chega à luxuosa ( de seu tio, abastado homem de m cios naquela capital. Logo verifu frieza da recepção; imediatami mandado para o sótão, ali passar morar até que aparecesse o empi prometido. Em vista da ausência do tio, ( desprezo com que era tratado, dia abandonou a casa dos parent resolveu enfrentar a vida sòzinhc nal da grande independência que i tarde orientou todos os aios do g de escritor. Conseguiu um lugar de apre em uma tipografia, mas não t onde passar a noite. Recordou-s um amigo, que partira de Para para trabalhar em uma farmáci, capital maranhense, e dirigiu-se lá. Bem recebido, pediu hospitalL por uma noite, pernoitando entã lado de um forno de padaria, em de outro lugar melhor. Durante algumas semanas ï
berto de Campos viveu assim,
tilhando
durante o dia na tipografia, e dormindo na padaria de propriedade do irmão
do seu amigo. Esse companheiro, Artur Serejo, encontrou-se
casualmente com o tio Emídio Residia então Humberto de Campos foi então empregado de limpeza em uma firma atacadista de tecidos, mas, não se adaptando ao serviço, logo após conseguiu colocação no "Jornal da Manhã", como aprendiz de oficina. Teve início então o período em que o espírito do escritor começou a se formar. No jornal o trabalho era no-turno, e os dias eram todos passados na Biblioteca Pública. Para fazermos uma ideia de sua tenacidade, transcrevemos a seguir um pequeno trecho: "Um dos empregados da Casa Trasmontana (estabelecimento do Sr. José Dias de Matos) possuía alguns livros que dormiam, guardados pela poeira, sobre um tamborete, a um canto do corredor. Encontrei aí os capuchinhos franceses Claude d'Abe-ville e Yves d'Evreux, nas crónicas que César Augusto Marques havia traduzido. Havendo também uma edição francesa, procurei aprender esta língua, confrontando, à falta de dicionário, a tradução e o original Depois de um mês de trabalho no jornal, com ordenado de trinta mil--réis, a Emília conseguiu empregar seu protegido na Casa Trasmontana, onde se dera uma vaga. O primeiro serviço do futuro deputado foi passar um dia inteiro lavando garrafas em um tanque, e no dia seguinte escrever as tabuletas em que eram anunciados os artigos vendidos pelo estabelecimento. A seguir transcrevemos alguns trechos do último capítulo de Memórias, intitulado "Fim de Século":"Costuma-se dizer que, o que acontece no primeiro dia do ano, acontecerá durante ele todo. Adotado o mesmo critério em relação ao século, ter-se-á explicado, talvez, a minha paixão do trabalho, e a atividade infatigável que me tem caracterizado a vida. É que eu passei a última hora do século XIX e a primeira hora do século XX, trabalhando, como se elas não fossem, na existência de um homem, diferentes das outras. A minha passagem pêlos jornais como tipógrafo, quer em Parnaíba quer no Maranhão, tinha-me dado a noção, já, da majestade da hora que ia soar no surdo bronze do tempo. Eu estava ao corrente da importância excepcional de que se revestia, para o mundo inteiro, aquela transição cronológica, e do interesse, da ansiedade, do nervosismo, com que os homens a aguardavam, como se o novo período da história humana trouxesse, a todos os povos, a felicidade e a redenção. Ao meu espírito infantil, a que o sofrimento e a experiência haviam dado vivacidade precoce, não escapava o relevo daquele acontecimento, que seria único na minha vida. E o que eu lia, e o que me rodeava, contribuía para acentuar aos meus olhos a culminância do fato de que eu ia ser testemunha. O 31 de dezembro, foi, mais ou menos, como a véspera do Natal. Tendo, também, um "bar", em que era servida cerveja do Rio e de São Paulo, a Casa Trasmontana ficava, às vezes, com as portas cerradas a partir das oito horas da noite, mas funcionava interiormente até nove ou dez, à disposição de pequenos grupos de beberrões, que permaneciam discutindo política, ou casos particulares, em torno das mesas redondas. E, naquela noite de fim de século, não foi aberta exceçãp: ficamos a servi-los até às dez horas, quando os mais retardados se retiraram. Através das sólidas portas coloniais inteiriças, e reforçadas de chapas de ferro, como as dos conventos antigos, eu adivinhava o movimento que ia lá fora, nas ruas da cidade. Foguetes estouravam longe. Transeuntes satisfeitos falavam alto, estalando os pés no passeio. De meia em meia hora passava um bonde, com o seu áspero ruído de ferragens ao trote ligeiro dos burros. O chicote estalava no ar, amarrando os gritos do cocheiro. E o barulho do veículo perdia-se à distância, desaguando no largo do Carmo. Às dez e meia, enfim, com as portas rigorosamente fechadas, e com os bicos de gás abrindo em pequenos leques nos diversos compartimentos da velha casa de comércio, o Sr. Dias de Matos torceu os seus fartos bigodes lusitanos e grisalhos, e ordenou: — Vamos dar balanço nas
mercadorias... Comecemos pelas bebidas. Sem um protesto ou um movimento de má vontade, atiramo-nos, os cinco caixeiros, ao trabalho. Deitadas nas prateleiras, o gargalo para fora, como canhões de fortalezas de vidro, as garrafas de cerveja, de vinho, de conhaque, de vermute, eram contadas, c' anunciadas, em voz alta. — Trinta e seis garrafas de cor que Macieira! j — Trinta e seis de Macieira..! confirmava o patrão, escrevendo. — Vinte e duas de Colares n." l — Vinte e duas de Colares n.° ] repetia o Sr. Dias de Matos. — Quatorze meias ditas, idem! — Um, dois, três... quatorze, vinte, trinta... trinta e oito... O buzinar das fábricas, o estrom dos foguetes, a gritaria que vem i ruas, o Hino Nacional atacado piano em uma casa próxima, int rompem a minha conta, detendo-o dedo sobre a tampa de uma i latas. Aquele momento é excepi nal na História da Humanidade. civilização vira uma página lida s saber que emoções lhe reserva a tra, que vai ler.. . De pé na esca tudo isso me passa pelo pensamei Ao fim, porém, de um minuto, c tinuo a conta: — Trinta e nove, quarenta, q renta e um, quarenta e dois... E é ainda com a buzina de algui fábricas retalhando o céu com o tilete sonoro, que anuncio, do i da escada, para o patrão: — Quarenta e dois litros de az' português Brandão Gomes! E ele, com a mesma fleuma, i levantar a cabeça do papel em escreve: — Quarenta e dois litros de az português Brandão Gomes... Foi assim, que, humilde caixein século dezonove, penetrei o sei vinte." |
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